Quando todo mundo desconfia de si mesmo
Artigo para a Revista da Folha - Jornal
A Folha de S. Paulo - domingo, 13 de abril de 2008.
caso Isabella: todo mundo desconfia
de si mesmo
por Jorge Forbes*
Quem matou Isabella?
Essa pergunta atravessou o país, na semana passada, em todas as
casas, em todos os cantos. Quem pode matar uma menina linda de cinco
anos, sorridente, gaiata, livre no corpo e no olhar que olha a
câmera de frente? Quem?
Matar uma menina como
Isabella é ferir a última das garantias de nossa vida social. Há
pouco tempo ninguém roubava uma igreja, o ladrão teria medo da ira
dos céus; também não se batia carteira de velhinho nem bolsa de
velhinha; seria ferir o código da malandragem; não se batia em
mulher. Imagine! Isso passou, a sociedade foi ficando cada vez mais
acuada, amedrontada, escondida em carros esfumaçados e blindados,
fechada em prédios cheios de alarmes, como o de Isabella. Oh, "London,
London", que triste canção. Tanta proteção para nada, ela morreu.
Quando um crime é
cometido por uma razão aparente: fome, vingança, sobrevivência, de
certa forma se compreende, embora não se aceite nem se dê razão.
Crimes desse tipo são bem classificados. Neles, a diferença do
criminoso com o homem comum e sua situação de vida são, em grande
parte, patentes.
Agora, quando a situação
de um crime reproduz o cotidiano, todo mundo passa a desconfiar de
si mesmo.
Poderia ter acontecido
com minha filha, ou, pior, será que eu poderia cometer uma
atrocidade dessas, eu que não tenho nenhuma história pregressa que
me leve a desconfiar de mim mesmo? Pode sim, um criminoso não é
criminoso até que cometa um crime, caso contrário, vamos começar a
inventar disposições genéticas perigosíssimas e construir
berçários-cadeia. 'Vá buscar o bebê da cela três para mamar.'
No caso de Isabella,
ainda tem o detalhe da madrasta. Quantas mulheres recém-divorciadas
encheram-se de razão nesses dias para proibir o ex-marido de passar
o fim de semana com o filho e a nova namorada?
Ninguém,
fantasiosamente, gosta de madrasta nem de sogra. Ninguém gosta de
intermediários de amor, de algo ou de alguém que lembre que entre o
amante e a amada existe uma barreira. Pobres madrastas, pobres
sogras. Elas levam a culpa de algo que está na essência do humano: a
falta de garantia dos nossos laços afetivos.
A cena da família unida
no supermercado de sábado, tranqüila, carinhosa, de chinelão,
fazendo do carrinho de compras uma Ferrari para as crianças, não
poderia servir de melhor ilustração para um cartão-postal de
felicidade. Qual o quê. Poucas horas depois, o trágico, o sem
solução. Voltamos à cena, uma, duas, várias vezes; ela bateu o
recorde de audiência dos sites. Tentamos detectar o espectro da
desgraça rondando aquele passeio na escada rolante, buscamos
avidamente algum sinal que nos proteja, que não faça com que
fiquemos todos paranóicos em cada momento feliz.
Mal, oh mal, onde está
você? Será que você está na ausência das declarações do pai? Ou será
que se disfarça na beleza jovem da madrasta sem lágrimas; ou não,
vai ver que você se intromete na marreta do pedreiro, aquele Pedro
que faz casa para o outro bem morar, enquanto ele mora na marmita,
sim, vai ver que foi ele.
Cada um faz uma
hipótese, sempre baseada na sua visão de mundo e na maneira pela
qual reagiria em uma situação dessas. Rapidamente os falastrões
investigadores das razões alheias se dão conta de que as emoções
humanas são bem mais complexas que o bom senso. Pode um pai não
chorar no momento seguinte da morte de sua filha? Claro que pode,
quem nunca teve um branco na vida, um impacto tão grande que o mundo
vira paisagem branca? O não-choro, por si só, não incrimina o pai,
como, ao contrário, o choro de Suzane Richthofen, no enterro de seus
pais, não a inocentava, como não a inocentou.
Freud aconselhava a, se
invocarmos os demônios, que ao menos conversemos com eles, antes de
despachá-los de volta. Os demônios estão aí; como é de praxe, eles
aparecem na morte de um anjo. Daqui a pouco vamos mandá-los de volta
às suas profundezas, as quais gostamos de ignorar. O momento da
verdade dura é agora, que melhor será se durar mais que um só
momento. Vamos despachar os demônios assim que ficar confirmado,
jurado e sacramentado o nome do assassino. Todos respirarão
aliviados ao saber. Ufa! Não fui eu. Foi ele. Só podia ter sido ele,
como eu não pude entender isso antes? E a festa voltará.
Não há garantia para o
frágil laço social humano, dizia. Bichos são sempre iguais. Homens
nem sempre são homens, não há um piloto automático de humanidade.
Esse é o motivo de viver no princípio de responsabilidade que não
ausenta ninguém da existência coletiva. Somos responsáveis por
Isabella? Sim, é o que isso quer dizer. Uma responsabilidade
jurídica condenará o criminoso, mas o princípio ético da
responsabilidade humana, diferente da estritamente penal, obrigará
todos nós a prosseguirmos com esta marca em nossas vidas. Seu nome?
Isabella, uma 'isola bella', uma ilha bela.
*Jorge Forbes, 56,
psicanalista, é presidente do Ipla (Instituto da Psicanálise
Lacaniana) e diretor da Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos
do Genoma Humano da USP.
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