Por José Pacheco
Insisto em
contar ao Marcos histórias que o desgaste da memória
ainda não apagou. Falo-lhe dos primeiros tempos de uma
viagem em busca de uma Escola mais fraterna. Descrevo
episódios luminosos, poupando o Marcos a relatos de
ignomínias, pois o meu neto há-de chegar a descobrir por
si próprio e a seu tempo, que os maravilhosos seres
humanos também são capazes da perfídia e da maldade.
Explico-lhe como, perante as contrariedades e
insucessos, nos agarrávamos aos livros como a bóias
salvadoras. Nos momentos mais críticos, quando a vontade
de desistir era imperativa, evitávamos o naufrágio,
relendo-os, para percebermos onde nos teríamos enganado
na interpretação dos mapas que nos levariam à praia
prometida.
Só não sabíamos que toda a viagem tem regresso. Que o
barco que parte não é o mesmo que regressa, mas
regressa. Que a vida é toda ela reencontro. Que somos um
pouco de cada ser que encontramos na viagem. Que há
seres viajando ao nosso lado, noutras viagens. E que até
os mortos queridos vão a par, quando ousamos contrariar
ventos predominantes. Se alguém não acredita, que medite
no que vou contar.
Foi numa São Paulo frenética, num fim de tarde, enquanto
viajava de carro entre dois aeroportos. O motorista era
conversador e de fala fluente. E a conversa (ou melhor,
o monólogo) arrancou ao mesmo tempo que a viatura.
Pensava eu ter de aguentar a costumeira conversa sobre o
tempo que fazia… Mas enganei-me, pois o motorista
falou-me da sua infância no Nordeste. Contou-me
histórias de fome e abandono. Sendo o mais velho de dez
irmãos, foi empurrado, bem precocemente, da escola para
o trabalho duro. Já adulto, aprendeu a ler, tirando
dúvidas com os que partilhavam o jornal do botequim do
bairro. Até aqui, nada de novo, se pensarmos ser esta
história igual a tantas outras histórias de exclusão de
negros, de negros quase-brancos e de brancos
quase-negros… Mas o melhor estava para vir. A certa
altura do monólogo, parámos nuns semáforos. Um bando de
meninos de rua mostrava habilidades malabaristas. O
motorista comentou, num brasileiro que adapto para
português de Portugal, com prejuízo da perda do ritmo e
da doçura da fala:
- “Veja o senhor ao que chegou este país! Estes meninos
não deveriam estar na escola?”
Compreendi que aquela era uma pergunta retórica, pois
nem sequer tive tempo para ensaiar a resposta.
– “Mas eu imagino que tenham razões para não ir. E
acredite que não será só por necessidade. Eles não
gostam mesmo de ir à escola. A escola não lhes diz nada.
Eu sei que é assim, porque o mesmo se passou comigo.
Quando era da idade deles, empurraram-me para fora da
escola. Mas eu também quis sair. Aprendi a ler por
necessidade. Não foi a escola que me ensinou”.
Assenti com um aceno a que não deu atenção. E foi
enunciando autores seus preferidos. Gosto eclético, que
ia da literatura de cordel aos clássicos. Até que atirou
nova pergunta retórica:
- “O senhor sabe o que faz a minha mulher?... É
professora! Quando nos casámos, ela já tinha estudos,
mas quis tirar um curso. Só tinha um problema: não
gostava de ler. E eu fiz um trato com ela. Ela passava a
fazer as contas do meu serviço e eu ajudava-a a tirar o
curso”.
Eu ia perguntar como tinha sido concretizado o contrato,
mas não foi preciso, que a resposta sem pergunta veio de
imediato:
- “A minha mulher trazia livros para eu ler. À noite, eu
lia. E explicava à minha mulher o que vinha nos livros.
Ela fazia as provas e ficava aprovada. E, assim, fez o
curso de professora”.
Esbocei um sorriso, entre o espanto e a admiração. E ele
reatou a conversa, falando de autores que havia lido:
Freinet, Montessori, Dewey, Piaget... E rematou a
conversa, por estarmos a chegar ao nosso destino:
- “Para o senhor deve ser difícil compreender o que lhe
vou dizer, porque são assuntos da Pedagogia, da
Educação… compreende?”
Não retorqui, e ele concluiu, dizendo:
- “Quando li os livros do Paulo Freire, que é um
educador do meu país de que o senhor talvez já tenha
ouvido falar, é que eu entendi o mal que algumas escolas
fazem a certas crianças. E até me deu vontade de
chorar”.
Talvez nunca aquele motorista venha a saber o quanto me
comoveu a sua história. Talvez nunca possa
manifestar-lhe a minha gratidão, porque não o pude
fazer, naquele momento. O nó que eu senti na garganta
ameaçava desatar-se…
No decurso das nossas vidas, há dias assim, prodigiosos.
Acabo de receber uma chamada telefónica. Seria idêntica
a muitas outras, um convite para fazer uma palestra
sobre a Ponte. Mas a minha memória acendeu-se, ao
escutar o nome da pessoa que me falava do outro lado da
linha. Ousei perguntar se seria filha ou familiar da
professora Isabel Pires. A minha interlocutora respondeu
que era ela mesma, a Isabel em pessoa. Na década de 70,
sem que a Isabel o soubesse, foi uma sua obra que
iluminou os caminhos da aprendizagem da matemática de
muitas gerações de alunos da Ponte.
Encontrei a Konstance Kamii, professora do Alabama, num
aeroporto estrangeiro, quando regressava de um
congresso, onde (coincidência?) fui falar da Ponte. E
agradeci-lhe um contributo que ela ignorava ter dado.
Foram os seus estudos sobre autonomia, a partir dos
contributos de Piaget, que sustentaram o quanto basta de
teoria, nos primeiros tempos do nosso projecto.
Volvidos trinta anos, quando a barca de sonhos chega ao
seu primeiro porto e se apronta para nova viagem, começo
a coabitar com um Mistério a que não dou nome. Há algo
cuja existência a minha razão sempre rejeitou. Os
projectos (conhecidos ou ainda anónimos), que visam
resgatar a vocação da Escola, não seguem sempre rumos
paralelos. Súbitos reencontros nos mostram que esses
projectos também se alimentam de ocultas solidariedades.
Será verdade que andam anjos pela Terra? |