A Lei e o outro


Sérgio Salomão Shecaira

Secretário-Geral do Grupo Brasileiro da AIDP, ex-presidente do IBCcrim e Professor da Universidade de São Paulo.

O tamanho da população carcerária é conseqüência de decisões. Temos liberdade de escolha (se pensarmos sobre o que escolhemos). Segundo o censo penitenciário nacional de 1994, 39% dos encarcerados no país eram presos provisórios. O controle do crime é uma máquina que produz dor para muitos e riqueza para alguns.

Muitas são as críticas apontadas contra o sistema punitivo. Uma delas é  a de que ele é burocrata e insensível. O processo de compartimentalização de funções subjacentes ao sistema punitivo faz dele um mecanismo sem alma. Não faz muito tempo um lavrador foi preso em Brasília. Estava desempregado e raspava a casca de uma árvore para fazer um chá para sua esposa que padecia de mal de chagas. Ela estava na cama e ele em uma área de proteção ambiental. Foi preso em flagrante por  crime contra o meio ambiente. O policial florestal afirmou não poder fazer nada senão prendê-lo (afinal ele cometia um crime previsto no ordenamento). O inquérito policial foi aberto pelo delegado (afinal ele cometia um crime previsto no ordenamento). A denúncia veio a lume (afinal ele cometia um crime previsto no ordenamento). Não duvido que seja condenado (afinal...). Cada instituição que forma o sistema punitivo (polícia, ministério público, magistratura) tem os olhos voltados para si, cônscia de um dever a ser cumprido e convicta de que “faz justiça” combatendo a criminalidade. Assim, ninguém se sente responsável pelo que acontece ou acontecerá com o acusado pois, no frigir dos ovos, os contatos psicológicos com os acusados —que irão sofrer as conseqüências do crime— são absolutamente efêmeros.

Nils Christie nos diz que a “distância social tem uma importância particular. A distância aumenta a tendência de atribuir a certos atos o significado de crimes, e às pessoas o simples atributo de criminosas”. [1] Imaginemos alguns exemplos. Uma criança bateu no irmão (art. 129 do CP). Ou subtraiu balas que estavam guardadas para um visitante (art. 155). Inquirido sobre o sumiço não  diz a verdade, ou pelo menos toda a verdade. Não pensamos em aplicar as categorias do direito penal. Não chamamos nosso filho de criminoso e nem seus atos de crime. Alguém rabisca o elevador do edifício que moramos (art. 163). Apuradas as responsabilidades constata-se que o engraçadinho era um menino do prédio. Filho do outro. Logo dizemos: algo tem que ser feito; não podemos deixar barato, pois este moleque é muito levado. Seu ato não é propriamente um crime, mas ele merece uma punição. Passamos a exigir do zelador  mais vigilância e do síndico uma “providência”. Um menor desconhecido, maltrapilho e sujo, em uma rua do centro de uma capital brasileira, nos aborda. Tenta subtrair alguns trocados para o almoço (art. 155). O que fazemos? Chamamos as autoridades e pedimos sua prisão. Afinal não é conhecido, é filho da rua, logo não é filho de alguém.

Por que  não punimos nosso filho com o mesmo rigor do menino que anda vagando pela cidade? Porque sabemos demasiado. Conhecemos o contexto e o nosso filho. Ele pegou dinheiro para comprar um brinquedo novo, mas sempre dividiu com o irmão e com os amigos as suas coisas. Bateu no irmão, mas muitas vezes o consolou, compartilhando as angústias comuns à idade. Mentiu, mas continua sendo um garoto em que se pode confiar, pois em inúmeras oportunidades foi sincero.

Tudo isso é verdade, mas não se aplica ao menino do prédio e, menos ainda, ao garoto da rua. [2]

Crimes não são quaisquer atos. São atos mediados pela distância. O crime é criado. Primeiro surgem os atos. Depois há um longo processo cultural para atribuir a alguns atos o significado de crimes. E a distância tem imperiosa importância nesse contexto. O atributo de criminosos deve-se, em grande medida, à avaliação que fazemos dos atos. Nós criamos os crimes.

Pouco tempo faz defendi um garoto —como muitos do foro— que praticara um crime patrimonial —como quase todos da rua. 19 anos, réu primário, sem passagens anteriores pela Febem, residência fixa, trabalhando, família estruturada. Pobre como muitos. Preso em flagrante vai para um distrito policial —como muitos da cidade. Projetado para acolher 30 pessoas, por tempo efêmero, tinha 130 por tempo indeterminado. Colhi sua assinatura na procuração e comecei o trabalho. 5 dias depois, indeferida a liberdade provisória, voltei para comunicar-lhe o ocorrido. Já não eram 130, mas 165. Os presos dormiam de valetes (cabeça de uns contra pés dos outros). Algumas celas não tinham espaço físico para que todos dormissem durante a noite. Resolvia-se o problema com revezamento. Banho só de canequinha e em algumas partes do corpo, especialmente os pés, pois estes ficariam contra a cabeça dos colegas de cela. Muitos tinham doenças de pele e alguns estavam tuberculosos e sem assistência médica. Audiência reservada com advogado era impossível. Afinal, algum companheiro de presídio poderia supor ser aquele preso o responsável por ter frustrado a última fuga do distrito, pondo em risco sua integridade. Na audiência de interrogatório do réu, alguns dias e algumas petições depois, reiterei o pedido de liberdade verbalmente. Aludi às razões jurídicas (não estavam preenchidos os requisitos que autorizavam a prisão cautelar). Aludi às razões pragmáticas (ainda que condenado à pena máxima teria direito a substitutivos penais previstos em lei). Aludi às razões humanas (ponderei as circunstâncias existenciais que o acusado vivenciava, a situação de desespero da mãe).  A magistrada ignorou todas as razões, principalmente as últimas, sob a argumentação de que era essa a realidade carcerária do país; e que isso acontecia com todos os filhos de pessoas presas em nossa cidade.

Pensei eu: quase todos...Pensei ainda: será que se o filho fosse dela a indiferença burocrática e a distância seriam as mesmas?

Nas sociedades primitivas os atos eram avaliados somente por Deus. Com o surgimento dos agrupamentos sociais, homens, famílias, clãs e tribos substituíram Aquele olhar. Hoje, Deus e os homens foram substituídos pela moderna (?)  e mecânica (!) eficiência(?!)  de outras formas de vigilância. A vigilância indiferente e eqüidistante da lei e de seus operadores burocratas.[3] O crime, como expressão de um conflito, na maior parte das vezes, não é mais compreendido pelos juristas. Seu encastelamento em torno das normas impede o questionamento da lei e a busca do fundamento doutrinário da pena. Os conceitos com puro esteio na norma neutralizaram a discussão sobre as determinações sociais do delito, sobre qualificação política da transgressão ou sobre as razões existenciais, estruturais e conjunturais que condicionam a pena. A dogmática estrita cobre com um manto supostamente neutro as decisões cotidianas da justiça que são (ou deveriam ser), antes de tudo, humanas. O referencial de sensibilidade foi substituído pelo paradigma da lei.

Muitos perderam a liberdade de escolha como se o tamanho do problema carcerário não fosse fruto das nossas decisões. Acredito que ainda está por ser elaborado o manifesto da sensibilidade jurídica que possa fazer  com que os operadores do direito pensem sobre o papel que desempenham socialmente e sobre os papéis que estão sobre a mesa diante de si.


[1] A indústria do controle do crime. Ed. Forense, Rio, 1998, p. 13.

[2]  Idem, passim.

[3] O vocábulo burocracia significa “poder do escritório”. Bureau, em francês, é escritório e Kratein, do grego, governo ou poder.

 

 

 


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