Jane Patrícia Haddad

Palestras e Conferências

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As inquietações dos professores

osé Outeiral

Médico Psiquiatra. Psicanalista. Autor de livros e trabalhos publicados no Brasil e no exterior, especialmente do interesse dos professores os livros “Adolescer” e “Mal-estar na Escola”

( com Cleon Cerezer ).

 

Vivemos hoje na época dos objetos parciais, tijolos estilhaçados em fragmentos e resíduos.

Deleuze e Guatari

É uma questão recorrente, com a qual me defronto, as queixas sobre “o desgaste emocional” dos professores. O que estará acontecendo? Quais serão os elementos que determinam essas observações? Quero trazer algumas idéias para que possamos explicitar mais, se possível, os componentes destas “queixas”. Não tenho a expectativa de oferecer “respostas”, mas, sim,  de compartir as preocupações. Hoje temos de adotar um olhar e uma escuta viajante para tentar dar conta das complexidades da cultura contemporânea. Um ponto de vista, um saber único e estático, não é suficiente. Caso alguém fique sentado olhando um cubo somente poderá visualizar três faces; é necessário contar com outros saberes.

A sociedade contemporânea. O momento que vivemos.

Há, doravante, no que se refere à ordem social e política, um problema específico da infância, a exemplo da sexualidade, da droga, da violência, do ódio – de todos os problemas mais insolúveis derivados da exclusão social. Como outros tantos domínios, a infância e a adolescência convertem-se hoje em um espaço destinado por seu abandono à deriva e á delinqüência.

J. Bardrillard

Penso que é necessário iniciar pela constatação de que vivemos um momento de profundas e rápidas transformações, onde uma série de valores e paradigmas estão sendo contestados, modificados ou, mesmo, sendo substituídos por outros. Essa não é uma situação inédita, pois na evolução da sociedade existem períodos de transformações bruscas. Após algumas gerações de aparente estabilidade, por vezes abrangendo alguns séculos, essas mudanças ocorrem. É interessante pensar em uma metáfora geológica. Lembremos que o nosso continente e o continente africano eram um só. O  movimento das placas tectônicas, entretanto, praticamente imperceptível mas gerando quantidades fantásticas de energia, acaba por produzir terremotos e após surge uma nova “aparente estabilidade”. Há uma constante  mobilidade. Ocorre algo parecido com a sociedade e  um enunciado para discussão é que estamos atravessando o epicentro de um terremoto, um terremoto cultural. Não esqueçamos que nos anos setenta, comemorando um novo campeonato mundial de futebol, havia uma marchinha que dizia “noventa milhões em ação”; hoje somos mais de cento e sessenta milhões de habitantes. Nos anos cinqüenta do século passado cerca de 70% de nossa população vivia em cidades pequenas ou no campo e na passagem do século a situação de inverteu e  70% das pessoas , ou mais, habitam os grandes centros urbanos. Cidades importantes como Goiânia e Londrina, por exemplo, não tem setenta anos. As cidades cresceram com um desenvolvimento anômalo, como um tumor, diria um médico, com graves desigualdades sociais. É esse o espaço que habitamos, nós, as famílias e suas crianças e adolescentes. Paradoxalmente, na multidão da grande cidade o que existe é desamparo e isolamento. Os problemas, evidentemente, não se derivam “apenas da geografia”, mas busco abordar a questão do espaço para trazer a reflexão, pois como escreveu Le Courbusier, o arquiteto, o existir começa  com a ocupação do espaço.

Mudou também a família. Na década de 70, do século passado, as questões familiares nos conduziam a refletir sobre a passagem da família patriarcal para a família nuclear. A família patriarcal, constituída por grupos  familiares de vários graus de parentesco ( avós, tios, primos, etc. ), habitando espaços próximos e, às vezes, participantes de uma mesma atividade produtiva, oferecia à criança e ao adolescente uma rede familiar, um tecido social, de proteção, no caso de dificuldades por parte dos pais, assim como um maior número de modelos para identificação ( mais uniformes, coerentes e estáveis e pertencentes a uma mesma cultura ). Este grupo familiar é próprio das pequenas cidades do interior. Com a rápida migração para os grandes centros urbanos passamos a encontrar  a família nuclear, constituída por um casal ( ou somente pela mãe, em pelo menos um terço das famílias segundo o IBGE ) e um ou dois filhos, longe do grupo familiar de origem, anônimos, isolados e solitários, desenraizados de suas culturas de origem. Exatamente nessa década, observamos crianças e adolescentes passando a chamar os adultos em geral, e os professores em particular, de “tios”. Estes novos “tios” penso que são assim denominados por uma necessidade e  nostalgia de recompor o tecido familiar rompido.  Conheço o texto escrito pelo saudoso Paulo Freire sobre esta situação da denominação dos professores como “tios”, mas penso que hoje os professores serão convocados não só como “tios”, mas para “funções maternas e paternas”, pois muitas famílias fazem uma “terceirização” dos cuidados familiares, de forma, digamos, “pós-moderna” ( num país que nem bem é moderno, como explicita Sergio Rouanet ),  para a escola, seja ela pública ou privada, ocasionando, evidentemente, dificuldades para os professores. O Iluminismo criou o conceito   de “infância”, como período de desenvolvimento, com direitos e necessidades específicas, e a sociedade contemporânea ( ou a alta modernidade ou pós-modernidade ) está desinventando a infância. A adolescência deixa de ser um momento evolutivo e passa a ser, também,  um sintoma social. A globalização é também a globalização do desejo: um menino de nossas periferias que o mesmo tênis e o mesmo boné de marca, de um menino classe média de Boston.

Os professores e a sociedade

... segundo a recém-divulgada Síntese dos Indicadores Sociais do IBGE, homicídios, acidentes de trânsito e suicídios ( as chamadas mortes por causas violentas ) foram responsáveis, no ano de 1998, por 68% dos óbitos na faixa entre 15 e 19 anos.

Editorial da Folha de São Paulo, “Juventude assassinada”, 13 de abril de 2001

Os professores como membros de famílias e também como pais, enfrentam estas dificuldades que vivenciam as famílias de seus alunos. Existe hoje uma perplexidade nos adultos quanto à educação das  crianças e adolescentes. Faltam, devemos também considerar, “adultos” para identificações estruturantes, positivas ( pois existem as identificações “negativas”, não estruturantes ), e encontramos muitos “adultescentes” ( mixagem de adultos e adolescentes ) e , mesmo, essa categoria bizarra dos “adultkids” ( adultos infantilizados ). Brincando, quero registrar que assim como o mico-leão-dourado, o tamanduá-bandeira e a arara-azul estão ameaçados de extinção, também os “adultos” estão ficando raros... nas famílias e, mesmo, nas escolas.  Os professores estão no centro e na borda da sociedade e da cultura, percebendo, como cidadãos e como pais, além da prática que desenvolvem na sala de aula, as mudanças, os riscos e as angústias de todos nós. É o cotidiano que se revela na escola, mostrando as contradições que se fazem evidentes.

A formação dos professores

A formação dos professores é um outro fator a ser levado em conta. A Academia tem seus marcos referenciais em autores e experiências pedagógicas desenvolvidas nos anos sessenta,  setenta ou, na melhor das hipóteses, na década de oitenta, e que não consegue dar conta de crianças e adolescentes da primeira década deste novo século, deste período de intensas e rápidas transformações, da “turbulência” contemporânea. É necessário, acredito e peço que não me levem demasiadamente a sério, pois sou um médico e não um professor ( embora tenha sido por décadas professor de medicina ... ), que os professores devem, na experiência e na prática de seu cotidiano, construir um novo conhecimento. As tarefas e os desafios que são feitos  devem ser enfrentados com criatividade, coragem e esperança. O papel que lhes é oferecido é muito importante e uma “nova auto-estima” pode derivar daí: pensar, buscar entender, discutir novas abordagens, não temer ou esmorecer. Não tenho a menor dúvida de que muitas crianças e adolescentes terão no ambiente escolar a segunda, e talvez a última chance, de encontrar um ambiente favorável ao seu desenvolvimento. A escola, antes de tudo, deverá ser hoje um espaço de promoção da saúde e prevenção da doença. Aos professores cabe esta tarefa de transformação, não usurpando o papel dos pais e nem desconhecendo seus limites, mas tendo a audácia de pensar as intervenções necessárias aos novos tempos.

O último censo do IBGE ( indicadores sociais ) nos revela que nossos adolescentes morrem por homicídio, acidentes e suicídio e só depois por “doenças orgânicas”. As três primeiras causas de morte se devem a “causas externa ligadas à violência”. Somos obrigados todos a pensar sobre isto.  Os professores tem um papel que não havia, talvez, há algumas décadas: pensar sua prática, criar, enfrentar desafios.  A transformação passa, hoje, de maneira concreta pelo espaço escolar. Transformação de valores e da construção de um novo tempo, de escolher o caminho certo na encruzilhada entre uma sociedade solidária e a barbárie.

As inquietações dos professores

Prefiro a inquietação ao acomodamento; o barulho ao silêncio. A ansiedade é a força para as transformações. A inquietação poderá ser a energia para pensar as intervenções. Não desconheço  que os professores necessitam a valorização de sua tarefa, o que inclui, certamente, boas condições de ensino e de remuneração justa. Eles sentem a mudança, percebem a violência, o desamparo e o abandono e, inclusive, vivenciam diretamente estas situações. Estão no front, enfrentando as dificuldades no dia-a-dia.  As Instituições mantenedoras deverão fornecer respaldo para que os professores possam se atualizar, discutir e propor ações; aos professores cabe lutar por isto. A escola não é um “negócio” ( “negação do ócio”, e sabemos que “ócio” está no étimo da palavra “escola” )  e quando ela se transforma nesse sentido deixa de ser escola.

É necessário, sabemos todos, ter coragem e esperança; os professores possuem a possibilidade de desenvolver uma prática necessária, extremamente útil, nas condições que a sociedade apresenta. São inúmeras as experiências criativas e oportunas que estão sendo realizadas nas escolas, em diferentes lugares, numa rede que poderá se ampliar, forçando medidas e oferecendo novas oportunidades. Em um livro onde comento o mal-estar na escola, escrevo sobre algumas  funções destas instituições que, brevemente, quero retomar. A escola como espaço que possibilita e sustenta o sonho, o desejo, a esperança, a ética e a utopia. A escola como espaço que cria e desenvolve o pensar. A escola como o espaço lúdico ( do brincar ), experiência séria e imprescendível, primeira posse da cidadania, brincar que surge do étimo vínculum, vínculo. A escola que olha e escuta o aluno, respeitando as diferenças e singularidades de cada um. A escola que inclui os pais e se enlaça com a comunidade.

Não é pouco o que se espera do professor e não há como imaginar que ele não possa se inquietar com isso; mas estamos falando de um desafio extremamente importante, fundamental. Mais do que em qualquer movimento ou partido   político é na escola que se encontra a possibilidade de transformação em direção a um futuro com esperança. Não há que ter medo, inquietar-se é inevitável e criar novas idéias, conhecimentos e práticas é necessário. Não existe uma “receita” ou um “Manual de auto-ajuda” para evitar ou amenizar as tensões a que os professores estão expostos. Os alunos, por exemplo, farão “trasnferências” sobre seus professores de afetos, amorosos e agressivos, que originalmente seriam destinados aos pais. Se a família falha ou não oferece uma sustentação consistente para as necessidades do desenvolvimento e da maturação do adolescente, a raiva dele irá, eventualmente, recair sobre o professor. Ele será também objeto de identificação por parte dos alunos que estarão constantemente observando como ele age, fala e se comporta. As família delegam ao professor tarefas que seriam dos pais, como a educação sexual e o aprendizado dos limites, além de preparar seus filhos não para “a vida”, mas para “o vestibular”. A Instituição espera, por vezes, que o professor “mantenha os clientes”, como se a sala de aula fosse um balcão, onde na parede há uma placa:”O cliente sempre tem razão”. Não deve haver pensamento e atitude crítica, mas apenas “repetição e decorar” as apostilas.

Transitar nesse emaranhado psicológico e nessas demandas psicológicas não é tarefa fácil.

A compreensão dos acontecimentos, a discussão em grupos destas questões e o apoio das Instituições, acredito, tornará a tarefa mais efetiva e, conseqüentemente, mais gratificante. Reprimir os sentimentos e as idéias, não compreender o que acontece, ocasiona um profundo desgaste emocional e físico. Existem limites, mas é necessário ter coragem, exigir e lutar o “bom combate”.