Jane Patrícia Haddad

Palestras e Conferências

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Disciplina e Indisciplina na Escola - Piaget

DISCIPLINA E INDISCIPLINA NA ESCOLA:
UMA VISÃO PIAGETIANA

Mariana Ribeiro Franzoloso – UTP
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Resumo
O presente estudo pretende explorar os conceitos de disciplina e de indisciplina na obra piagetiana, pela via do desenvolvimento moral. A problemática da disciplina/indisciplina é atualmente uma das questões mais discutidas por professores e está cada vez mais presente nas pesquisas e debates em educação. Com a idéia de compreender o fenômeno da indisciplina, pensando de forma preventiva, escolhemos estudar a teoria sobre o desenvolvimento moral proposta por Piaget e interpretar nela como se dá a construção da disciplina na criança. Inicialmente, discorremos sobre a problemática da indisciplina nas escolas e introduzimos a idéia de estudar a construção da disciplina. Em seguida, trazemos uma breve apresentação do teórico que influencia este estudo, Jean Piaget, para, na seqüência, explorarmos o tema da disciplina e indisciplina sob a visão desenvolvimentista e piagetiana a respeito do desenvolvimento moral. A partir deste estudo, entendemos que a disciplina é, inicialmente, de caráter externo, mas que na verdade, só precisa de relações interindividuais favoráveis para desenvolver a disciplina que está interna na criança.

Palavras-Chave: Disciplina, Indisciplina, Piaget, Desenvolvimento Moral.

Atualmente, uma das questões mais preocupantes e discutidas pelos professores é a disciplina, bem como, os fatores que promovem a sua ausência no ambiente escolar. Segundo Aquino (1996, p. 40) a indisciplina é considerada atualmente um dos principais obstáculos pedagógicos da escola contemporânea e suas manifestações tem sido fonte de preocupações em diversos países.
A discussão desta problemática está cada vez mais presente nas pesquisas e debates em educação, objetivando sua compreensão e as melhores formas de intervenção e prevenção. Garcia (2009, p. 2) ao investigar os dados fornecidos pelo inquérito internacional TALIS, desenvolvido pela OECD (Organisation for Economic Co-Operation and Development) em 2009, descobriu que os problemas de indisciplina exercem um papel de grande influência sobre o ambiente de ensino-aprendizagem nas escolas, por exemplo. Na maioria dos países investigados por esta pesquisa internacional, um em cada quatro professores perderia ao menos 30% do tempo das aulas devido a problemas de indisciplina dos alunos ou de tarefas administrativas.
Portanto, se trata de uma dificuldade comum entre muitos educadores e observamos que, atualmente suas expressões estão se tornando cada vez mais complexas, são marcadas por uma variedade de causas, tipos e concepções diferentes, exigindo assim, novas leituras, contudo, não podemos deixar de considerar que a indisciplina sempre esteve presente nas escolas, em suas mais diversas épocas.
O contexto da escola tradicional promoveu interpretações para a idéia de disciplina como controle de comportamento, instrução, conjunto de normas e autoritarismo, enquanto os atos de indisciplina eram controlados por meio de punições e recompensas. Percebemos que, ainda hoje, esta forma tradicionalista de pensar a educação está presente na sociedade e em algumas instituições. DeVries e Zan (1998, p. 193) confirmam, apontando que, geralmente, a disciplina é definida por muitos como métodos de controle e punição das crianças, para que sejam socializadas.
A pesquisa aqui proposta pretende avançar em uma perspectiva contrária à tradicional no objetivo de compreender a indisciplina, considerando algumas idéias que influenciaram muito a educação moderna. De La Taille (1996, p. 11) afirma que, no início do século XX, autores como Jean Piaget, propuseram a “autodisciplina”, que não é imposta de fora, mas inspirada na busca pessoal de equilíbrio, ou seja, do autogoverno das crianças, desenvolve-se uma disciplina muito mais saudável e livre. É a partir das propostas criadas por este autor, Jean Piaget, que pretendemos pensar a disciplina e a indisciplina na escola.
A seguir, trazemos uma breve apresentação do teórico que influencia este estudo para, na seqüência, explorarmos e compreendermos os temas da disciplina e da indisciplina à luz do desenvolvimento moral.

Jean Piaget
Conhecido como um dos autores mais importantes da Psicologia faz-se relevante situar brevemente quem foi Piaget. Biólogo e epistemólogo, Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, na Suíça em 1896 e faleceu em Genebra, no ano de 1980. Formado em Ciências Naturais, foi professor de Psicologia e Filosofia e Psicologia Genética em grandes universidades européias no século passado, como a Universidade de Genebra e Universidade de Sorbonne (PIAGET, 1999b, p. 1).  Em busca de compreender como o homem se constitui e, principalmente, como o homem constrói conhecimento, Piaget se dedicou ao estudo das origens desta construção, observando e pesquisando o desenvolvimento da criança, pois ela é o ser que mais constrói conhecimento.
A partir do estudo da evolução do pensamento, criou a Teoria Biológica do Conhecimento, que dentro dos estudos da Psicologia da Inteligência, nomeou de Epistemologia Genética, sendo, para ele, epistemologia, o estudo do conhecimento e genética, a origem, a construção. Assim, sua teoria buscou compreender os mecanismos mentais que o ser humano utiliza para se inserir e se adaptar ao ambiente em que vive. Foi investigando o processo de construção do conhecimento e o desenvolvimento das habilidades cognitivas que veio a concluir que o pensamento e a inteligência se desenvolvem gradualmente, ou seja, que o desenvolvimento cognitivo de uma criança é uma evolução gradativa. 
A teoria de Piaget é consistente e sua obra muito vasta. Ele escreveu muitos trabalhos ao longo de sua vida, o que resultou na publicação de mais de 70 obras. Grande autor e teórico da Psicologia do Desenvolvimento se preocupava, dentre outras questões, com a educação, possuindo, em sua vasta bibliografia, algumas publicações acerca deste tema.
Especificamente, considerando que Piaget não escreveu uma teoria pedagógica e nem foi um autor sobre pedagogia, não encontramos relatos sobre problemas de disciplina ou sobre indisciplina propriamente dita, no entanto, sua pesquisa sobre a construção da personalidade e a constituição do homem foi tão ampla que podemos estudar os temas de disciplina e indisciplina sob este viés.
A palavra disciplina é citada algumas vezes na obra piagetiana e são sobre estas páginas que nos debruçamos, acompanhados da teoria sobre o desenvolvimento moral, para que possamos compreender e pensar outros caminhos na construção da disciplina na escola contemporânea.

Desenvolvimento Moral, Disciplina e Indisciplina
Em suas investigações, Piaget considerava que a criança precisa passar por diferentes estágios em um processo psicogenético de evolução para desenvolver a moralidade e o comportamento social, de concordância com as regras de funcionamento de uma determinada cultura e internalização das normas de convivência social. É na obra O juízo moral na criança, de 1932, que Piaget (1994) discorre sobre o desenvolvimento da consciência moral no desenvolvimento infantil a fim de responder a questão: “como a consciência humana vem a respeitar regras?” (1994, p. 23). Em sua pesquisa, concluiu que assim como a inteligência evolui, a moral também evolui, em um processo de interiorização de regras e valores que também ocorre em uma seqüência de etapas. Ele sugere que desde o nascimento, a criança é influenciada pelos pais e pelo meio social em que vive, sendo submetida a diversas normas e regras, e mesmo antes de aprender a falar, já aprende que deve acatá-las. A partir das interações com o meio, a criança, em um processo de construção interior, vai internalizando e se conscientizando das regras e dos valores morais que permeiam sua vida social.
O desenvolvimento moral acontece em um contexto de relações, necessitando assim, da interação social do sujeito com o ambiente em que vive e do vínculo afetivo que se estabelece nessas relações para acontecer. Este desenvolvimento, a fim de ser melhor compreendido, foi organizado por Piaget (1994) em três etapas, que chamou de estados (ou estágios) do processo de construção da moralidade na criança, classificados como anomia, heteronomia e autonomia.
O primeiro estágio do desenvolvimento da moral correspondente à anomia que pode ser explicado como a ausência de regras, onde as regras são plenamente motoras e a faixa etária aproximada é de 0 a 2 anos de idade. Segundo Piaget (1994, p. 33-34), neste período, as regras são motoras e individuais, não são coletivas e nem vem de uma realidade obrigatória, são puramente reflexas e manipuladas em função dos desejos da criança e de seus hábitos motores. Este estágio também pode ser reconhecido como uma pré-moralidade, pois a criança ainda não percebe a realidade moral e não vê obrigação nas regras sociais.
O termo referente ao segundo estágio, a heteronomia, que significa que a criança percebe a existência de regras, mas elas são vindas e expostas pelos outros, está relacionado com o momento de entrada da criança no mundo da moralidade. Neste momento, a criança começa a compreender a existência de regras para intermediar sua sobrevivência e convivência social. Ela começa a perceber que as regras devem ser obedecidas e são pensadas, pela criança, em relação à autoridade, ou seja, são os adultos que estabelecem as regras e as crianças obedecem sem questionar. Segundo Piaget (1994, p. 33-34), nesta fase, as regras para criança são externas e vistas como sagradas, pois a criança estabelece uma relação de submissão ao poder, de obediência ao adulto que detém a autoridade. Este estágio se inicia por volta dos 3 anos e meio e se estende até os 7 anos. Além disso, é a fase marcada pelo egocentrismo da criança, que como Piaget (1994, p. 40) explica, é uma conduta intermediária entre as condutas puramente individuais da criança e as condutas socializadas. É a fase onde as crianças recebem as regras de fora já codificadas e, mesmo quando estão junto de outras crianças, elas jogam cada uma por si, brincam sozinhas sem se preocupar e cuidar com a codificação das regras, elas estão centradas em seu ponto de vista, tendo dificuldade de pensar pelo outro. 
O terceiro conceito se refere ao estágio mais desenvolvido da consciência moral na criança, a autonomia, definida pela internalização e consciência das regras para o convívio social, ou seja, é a legitimação da moral, a autodisciplina, o autogoverno da criança. Para Piaget (1994, p. 34-35), neste estágio, surge a unificação e o controle mútuo das regras, que são pensadas e elaboradas pelo consentimento mútuo e coletivo, o respeito a elas é obrigatório e suas modificações são decididas em um consenso geral. Neste estado, a criança pensa a moral por uma relação de reciprocidade e a obrigação às regras está fundamentada no respeito mútuo com os adultos, diferentemente da fase anterior, calcada no respeito unilateral pelo adulto e em uma relação coercitiva e de autoridade.
São os dois tipos de relação de respeito adquirida nos indivíduos que originam os dois tipos de funcionamento moral. A relação baseada no respeito unilateral mantém o indivíduo sobre a moral da heteronomia, submisso a uma lei maior, a uma autoridade que dita o que é certo e o que é errado, a obediência cega à uma imposição, pois não há conscientização das normas e compreensão dos valores. Já a relação pautada no respeito mútuo e na cooperação entre os indivíduos permite o sujeito desenvolver a moral da autonomia, na qual operam as relações por reciprocidade, as percepções e internalizações das regras e dos valores de convivência social, e ocorre a descentração, possibilitando o indivíduo de sair do egocentrismo para agir e pensar no coletivo, no ponto de vista do outro, no bem maior.
Elucidados os três estágios do desenvolvimento moral criados por Piaget, bem como as relações de respeito que regem a moralidade humana, se torna possível e mais clara a compreensão do que é disciplina para este autor, que entende este conceito como sendo uma conduta moral, construída no indivíduo através das relações da afeição mútua. Para ele, a disciplina é algo que depende da interação do indivíduo com o ambiente para que possa ser construída e evoluída de dentro do próprio sujeito. E o entendimento deste conceito está ligado com as fases do desenvolvimento moral da criança. Segundo Piaget:

Para que as realidades morais se constituam é necessário uma disciplina normativa, e para que essa disciplina se constitua é necessário que os indivíduos estabeleçam relações uns com os outros (PIAGET, 1999a, p. 3).


Nesse sentido, um depende do outro e todos dependem das relações sociais. São pautadas nas relações sociais a percepção e conscientização das regras de convivência, o processo do desenvolvimento moral e, também, a construção da disciplina no indivíduo.
Assim, são as relações sociais estabelecidas pela criança que auxiliam e permitem o desenvolvimento moral, bem como, a construção da disciplina, que é determinada primeiramente pela imposição externa para que, posteriormente, seja estimulada sua compreensão e conscientização através da cooperação, das relações entre iguais e da afeição mútua. Entendemos a disciplina como uma construção interior, ou seja, ela é interna e sob a influência do ambiente sócio-moral ela é estimulada a se desenvolver ou não. Sob esta mesma perspectiva podemos pensar a indisciplina, que sempre envolve uma questão contextual, ou seja, também acontece em um contexto de relações. É necessária uma relação social ou pedagógica para haver indisciplina, que ocorre nesta interação do sujeito com o ambiente em que está inserido, e suas origens envolvem questões pessoais, familiares, sociais e escolares.
São as relações do ambiente onde a criança vive que permitem o desenvolvimento da moralidade na criança e a construção da autodisciplina. Por isso, vamos novamente citar os dois tipos de relação interindividual as quais todos (ou quase todos) passamos neste processo de constituição; a relação de coação, fundamento da moral heterônoma e a relação de cooperação, base da autonomia. Segundo Piaget (1994, p. 298), as relações de coação, baseadas no respeito unilateral são estabelecidas de forma natural e espontânea entre o adulto e a criança e contribuem para a formação do primeiro tipo de controle lógico e moral, do primeiro tipo de disciplina, uma disciplina normativa, que conduz a criança à heteronomia.
Entendemos que a disciplina é, assim, construída na criança no processo de desenvolvimento moral e o estágio da heteronomia já subentende este fato. É nesta fase que os princípios de disciplina começam a ser percebidos e constituídos na criança, fase na qual a criança se submete ao que está fora de seu corpo, se submete à regras já estabelecidas, à sabedoria do outro, do adulto, à norma e à disciplina que vem de fora, que, inicialmente é de caráter externo, mas que na verdade, só precisa de relações interindividuais favoráveis para desenvolver a disciplina que está interna na criança.
Segundo Piaget (1994, p. 294), a primeira forma de relação social é a relação de coação que se origina nos elos de autoridade e do respeito unilateral e se caracteriza pelas relações entre a criança e o ambiente adulto. Este tipo de relação é marcado pela imposição externa à criança de um conjunto de normas, regras, leis que organizam a sociedade e que são obrigatórias.
Neste sentido, a disciplina aparece como organizadora da criança e é esta exposição inicial que fornece rotina e direcionamento para o sujeito que está se formando. Contudo, sob a perspectiva piagetiana, a disciplina normativa e necessária ao desenvolvimento da criança é inicialmente imposta para garantir o seu conhecimento e percepção de regras, mas essa imposição não deve ser mantida, para não comprometer o desenvolvimento da criança à autonomia. Piaget observa que “a disciplina imposta de fora ou sufoca toda a personalidade moral, ou então, pelo contrário, a prejudica mais do que lhe favorece a formação”.
Assim, Piaget, nas poucas linhas que discorreu sobre o termo disciplina, critica o pensamento de alguns autores sobre a disciplina tradicional, calcada na imposição da autoridade e afirma:

É visível que nossos resultados falam tanto em desfavor do método da autoridade como dos métodos puramente individualistas. É absurdo e mesmo imoral [...] querer impor à criança uma disciplina completamente elaborada, quando a vida social das crianças entre si é bastante desenvolvida para dar nascimento a uma disciplina infinitamente mais próxima da submissão interior própria à moral do adulto (PIAGET, 1994, p. 300).


Dessa forma, é natural que a criança se submeta à disciplina estabelecida e elaborada pelo adulto na fase da heteronomia para se desenvolver e dependendo de suas interações com o meio, de suas relações entre iguais, da estimulação de relações recíprocas entre os indivíduos, seja conduzida ao self governament ou à autodisciplina. Piaget (1994, p. 294) sugere que “a própria evolução das relações de coação tenda a aproximá-las da cooperação”.
Com o tempo, a maturação biológica e a qualidade de suas relações sociais, a criança vai internalizando a lei e, a partir de uma construção interior que ela faz com o meio em que vive, as regras passam a fazer parte da criança e as suas relações embasadas na obediência a autoridade passam a ser fundamentadas na reciprocidade. Esta é a origem da noção de respeito mútuo, desenvolvida na criança quando entra no estado da autonomia. São as relações de cooperação, exercitadas no ambiente onde a criança está inserida, que levam ao desenvolvimento da consciência das regras, da norma e da disciplina e que estimulam no sujeito o desenvolvimento do autogoverno, da autodisciplina, permitindo assim a moral autônoma em suas relações sociais. “Só a cooperação leva à autonomia”, observou Piaget (1994, p. 299).
São apenas as relações de cooperação que podem permitir a descentração e possibilitar que a criança se liberte do pensamento egocêntrico, característico da moral da heteronomia, no qual o indivíduo só age e pensa sob um ponto de vista, o próprio. É no contexto das relações de cooperação, no ambiente em que a criança convive socialmente que ocorre o desenvolvimento da autonomia, estágio este que a criança se torna consciente da existência e dos motivos das regras e, a fim da convivência em coletividade, passa a funcionar pela moral da cooperação. De acordo com Piaget (1994, p. 299), as relações de cooperação tem ao mesmo tempo um papel libertador e construtivo na personalidade autônoma. O autor ainda argumenta que:

[...] a moral do dever constitui-se apenas como uma etapa do desenvolvimento da consciência e que o respeito unilateral exige, por seus fins, ser moderado pelo respeito mútuo, até o momento em que será definitivamente substituído por este (PIAGET, 1999a, p. 26).


A moderação na qual o autor acima se refere é feita através da convivência do indivíduo e um ambiente sócio-moral, que seja estimulador da conscientização das regras, da espontaneidade, da liberdade de ação e da convivência mútua entre semelhantes, ou melhor, um ambiente de educação moral. A aplicação prática das regras e da disciplina pela criança ocorre quando os valores e princípios morais já estão sendo internalizados e sua personalidade já está se tornando autônoma. Piaget (1999a, p. 12) afirma que, no que diz respeito à disciplina, existem pra criança dois tipos de regras, a exterior, possível de ser aceita pelo respeito unilateral e a interior, compreendida através do respeito mútuo. Como a regra é exterior enquanto a criança funciona sob a moral heterônoma, ela é sagrada, imutável e inatingível, mas, no entanto, ela não é aplicada quanto à regra interior, consideravelmente mais eficaz. A regra internalizada é a regra seguida e aplicada conscientemente em um consenso mútuo, a regra exterior, como está fora da criança, pode ser seguida em um momento, mas pode não ser em outro.
A indisciplina escolar, como fenômeno perturbador, obstrutor das relações sociais e do trabalho de aprendizagem, pode ser compreendida no âmbito das relações unilaterais, nas quais a regra é exterior ao raciocínio da criança e por ela, não é compreendida, possibilitando assim, o não seguimento da lei. A criança indisciplinada pode ser identificada, seguindo Piaget (2000, p. 64), como o indivíduo que não constituiu sua personalidade moral, que ignora o seguimento da regra e centra as relações sociais em si mesmo. Em contrapartida, a descentração do indivíduo e a internalização e consciência de regra e do respeito ao próximo, leva à disciplina autônoma.
Por isso, a autodisciplina é constituída a partir da internalização e conscientização da regra moral e é estimulada a partir da relação mútua e recíproca entre os pares. O ponto de vista, neste momento, é baseado no vínculo com o outro, na afetividade das relações, no vínculo com o coletivo. Disciplina é ação moral, é construída a partir da noção de responsabilidade, de valores e princípios morais e não de regras convencionais. Segundo Piaget (1999a, p. 30),


[...] é certo que a disciplina e o sentimento de responsabilidade podem se desenvolver sem nenhuma punição expiatória. [...] as relações de cooperação bastam para provocar nas crianças um tal respeito à regra que a simples censura e um sentimento de isolamento moral, resultantes do ato cometido, conduzem o faltoso à disciplina comum.


Nesse sentido, pela perspectiva moral podemos compreender as relações de respeito nos indivíduos e a questão da disciplina e da indisciplina. O respeito à regra é construído nas interações da criança com o meio social e a partir de dois tipos de relação, de coação e de cooperação, que vimos anteriormente, e que são permeados por dois tipos principais de sentimentos, o amor e o medo.
Na fase heterônoma, a criança respeita a autoridade do adulto por amor a ele ou por medo de ser punido caso não o respeite. No entanto, Araújo (1999, p. 34) explica que, na relação de respeito unilateral, o sentimento que prevalece é o medo; a criança respeita o adulto porque tem medo de ser punida. Porém, para haver qualquer tipo de respeito, deve haver um mínimo de afetividade na relação, ou a criança, sempre heterônoma, só agirá por uma relação coercitiva, na qual oferece obediência ao adulto sob coação e pelo sentimento do medo. Esse é o primeiro tipo de relação, que origina o sentimento do dever e da obrigação, não só através do medo da punição, mas primeiramente, através da afeição pelo adulto admirado e detentor de autoridade e respeito. Sobre isso, Piaget (2000, p. 66) observa que “o medo por si só não coage, mas propicia uma obediência toda exterior”, uma obediência que tem como único propósito fugir do castigo e da punição.
É a afetividade, a admiração, o amor ao adulto respeitado junto a experiência da criança em relações de cooperação, que fornecem à ela o ambiente próprio para o desenvolvimento do respeito mútuo e da autonomia, em que, o que prevalece é o sentimento de amor. Sobre isso Araújo (1999, p. 35) afirma:


É a afetividade ou o amor nas relações entre as pessoas que permite que o medo presente na relação não seja o da punição, e sim o de decair perante os olhos do indivíduo respeitado. Esse medo é totalmente diferente do medo da punição, característico dos sujeitos heterônomos.


O rompimento das relações afetivas e do elo de confiança entre os indivíduos é que é o temor do sujeito autônomo, prevalecendo o sentimento de amor, pois o medo é de perder essa relação afetiva. Segundo Piaget (2000, p. 67), é esse temor, de decair ao olhos do outro, que substitui a heteronomia, característica do respeito unilateral, pela autonomia, característica das relações de respeito mútuo entre os indivíduos.
São os dois tipos de relação de respeito que originam os dois tipos de funcionamento moral. A relação baseada no respeito unilateral mantém o indivíduo sob a moral da heteronomia, submisso a uma lei maior, a uma autoridade que dita o que é certo e o que é errado, sob uma obediência tácita ao adulto, pois não há conscientização das normas e compreensão dos valores. Já a relação pautada no respeito mútuo e na cooperação entre os indivíduos permite desenvolver a moral da autonomia.
Piaget destaca a convivência entre pares, principalmente na fase da heteronomia, para estimular seu desenvolvimento moral e enfatiza o valor da escola neste período de socialização. O sujeito “faltoso” com a disciplina, como afirmou acima Piaget, é a criança heterônoma que não convive em um ambiente onde as relações são de cooperação e reciprocidade, ou mesmo, que ainda não as compreende. Em seus escritos, Piaget não menciona a palavra indisciplina, no entanto, a partir da exploração da temática do desenvolvimento moral na criança e da palavra disciplina, por ele, algumas vezes citada, pudemos interpretar esse fenômeno.
Nessa perspectiva, a criança indisciplinada pode ser entendida como aquela que ainda não internalizou ou ignora as regras morais e que convive em um ambiente autoritário e arbitrário, não permitindo sua evolução a autonomia. A indisciplina implica, assim, a ausência de cooperação nas relações da criança e uma carência de justiça e respeito ao próximo, refletidos em suas atividades.
O que encontramos na vasta bibliografia de Piaget é o quanto se faz relevante na constituição da personalidade da criança a promoção da autodisciplina e da moralidade autônoma. Segundo Piaget (2000, p. 69):


O alcance educativo do respeito mútuo e dos métodos baseados na organização social espontânea das crianças entre si é precisamente o de possibilitar-lhes que elaborem uma disciplina, cuja necessidade é descoberta na própria ação, ao invés de ser recebida inteiramente pronta antes que possa ser compreendida.


Os métodos que Piaget se refere são a reciprocidade e as relações cooperativas, exercitadas na criança com seus semelhantes e com adultos preocupados com a educação ativamente moral, pois é nessas relações que a criança vai se conscientizando da importância das regras morais e construindo a sua disciplina autônoma. Colaborar com o desenvolvimento da moralidade é oferecer à criança um ambiente livre para que se desenvolva com espontaneidade e criatividade, com a prática dos valores e regras morais, sem restrições arbitrárias e em relações de cooperação entre os indivíduos e de reciprocidade entre adultos e crianças, para que possa construir sua própria disciplina, seu autogoverno e sua autonomia.

Considerações Finais
Explorando conceitos e revendo a teoria piagetiana, entendemos que a disciplina é um conceito social e externo, mas que sua conscientização e prática dependem do desenvolvimento psicológico do sujeito, que está relacionado com suas interações no meio em que vive. Esta é uma construção interior que passa por diferentes estruturas no processo de maturação psicológica, sendo parte do processo de desenvolvimento moral da personalidade do sujeito.
Assim, sob uma visão desenvolvimentista e piagetiana, entendemos a disciplina como parte do processo de constituição do ser humano e seu desenvolvimento e internalização se dão através de um processo gradativo, onde participam o indivíduo e o meio em que ele está inserido. Inicialmente, a disciplina é normativa, apresentada para criança como forma de garantir segurança e respeito à leis universais. Com o tempo, a maturação biológica e a qualidade das relações interindividuais que a criança experimenta, da mesma forma que ela vai se conscientizando e compreendendo as regras morais, ela faz uma construção interior da disciplina, constituindo assim, uma disciplina que é interna na criança, a autodisciplina.
Ao longo do trabalho desenvolvemos como o conceito de disciplina é apresentado na obra piagetiana para que assim, possamos refletir a questão da indisciplina que, na realidade, não aparece em seus escritos, mas pode ser identificada em algumas referências ao fenômeno. Longe de pensar a questão da disciplina sendo imposta pela autoridade e da indisciplina tentando ser administrada pelo controle de comportamentos e punições, Piaget sugere a construção da disciplina pela criança, para que pense e pratique a autonomia em suas relações de cooperação e se autogoverne, sem a necessidade de obstruir a sua convivência social.


REFERÊNCIAS
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AQUINO, Júlio Groppa. A desordem na relação professor-aluno: indisciplina, moralidade e conhecimento. In: AQUINO, Júlio Groppa (Org). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. 14. ed. São Paulo: Summus, 1996. p. 39-55.

DE LA TAILLE, Yves. A indisciplina e o sentimento de vergonha. In: AQUINO, Júlio Groppa (Org.). Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. 14. ed. São Paulo: Summus, 1996. p. 9 – 24.

DE VRIES, Rheta; ZAN, Betty. A ética na educação infantil: o ambiente sócio moral na escola. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

GARCIA, Joe. Indisciplina na escola: por que isso ainda não está resolvido? In: SEMINÁRIO PEDAGOGIA EM DEBATE, 9, 2009. Curitiba. Anais... Curitiba, UTP, 2009. p. 01-07.

PIAGET, Jean. Para onde vai a educação? 15. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000. 

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