Jane Patrícia Haddad

Palestras e Conferências

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O Novo Transcendente

Por Frei Betto*

Adital


A história da humanidade é uma história de sujeições. No período
pré-moderno, sujeição aos deuses do politeísmo, ao Deus do monoteísmo, ao
Rei da monarquia e ao Povo (sujeito abstrato) da República. Havia sempre uma
figura do Outro ao qual todos deveriam se reportar.

Esse Grande Outro prescrevia o certo e o errado, o bem e o mal, a graça e o
pecado, a lei e o crime. O mundo se configurava de acordo com os preceitos
do Grande Outro. As alternativas eram simples: sujeitar-se sob promessa de
recompensa ou rebelar-se sob risco de punição.

Na modernidade, o Outro se multiplicou, adquiriu várias faces,
descentralizou-se na diversidade de ideologias, sistemas de governo e
crenças religiosas. Tanto a antiguidade quanto a modernidade nos remetiam à
transcendência, ainda que fundada na razão. Se não era Deus, era o Partido,
o líder supremo, as ideias inquestionáveis. Algo ou alguém nos precedia e
determinava o nosso comportamento, incutindo-nos gratificação ou culpa.

A pós-modernidade, em cuja porta de entrada nos encontramos, promete fazer
de nós sujeitos livres de toda sujeição. Seria a volta ao protagonismo
exacerbado, em que cada indivíduo é a medida de todas as coisas. Já não se
vive em tempos de cosmogonias e cosmologias, teogonias e ideologias. Agora
todos os tempos convergem simultaneamente ao espaço reduzido do aqui e
agora. Graças às novas tecnologias de comunicação, tempo e espaço ganham
dimensão holográfica: cabem em cada pequeno detalhe do aqui e agora.

Será que, de fato, a pós-modernidade nos emancipa do transcendente e da
transcendência? Introduz-nos no "desencantamento do mundo" apontado por Max
Weber?

A resposta é não.

Há um novo Grande Outro que nos é imposto como paradigma inquestionável: o
Mercado. As sedutoras imagens deste deus implacável são disseminadas por seu
principal oráculo: a publicidade. À semelhança de seu homólogo de Delfos,
nos adverte: "Dize o que consomes e eu te direi quem és".

O grande teólogo desse novo deus foi Adam Smith. Inspirado na física de
Newton, em "A riqueza das nações" e "A teoria dos sentimentos morais", Smith
aplicou à economia a metáfora religiosa do Grande Relojoeiro que preside o
Universo.

O relógio funciona graças à precisão mecânica fabricada por alguém fora dele
e invisível a quem o porta: o relojoeiro. Assim, na opinião de Newton, seria
o Universo. Na de Smith, a vida social regida por interesses econômicos. A
diferença é que o Deus Relojoeiro de Newton é chamado de Mão Invisível por
Smith. Segundo este, o egoísmo de cada um, guiado pela Mão Invisível,
promoveria o bem de todos...

É exatamente o que afirma Milton Friedman, líder da Escola de Chicago: "Os
preços que emergem das transações voluntárias entre compradores e vendedores
são capazes de coordenar a atividade de milhões de pessoas, sendo que cada
uma conhece apenas o próprio interesse".

Esse o fundamento do pensamento liberal e do sistema capitalista. É o
principio do laisser faire, deixar (deus) fazer. O que, traduzido em termos
políticos, significa desregulamentar, não apenas as esferas econômicas e
políticas, mas também a moral. Abaixo a ética de princípios e viva a ética
de resultados! Nesse protagonismo pós-moderno, cada ego é a medida de todas
as coisas. O que imprime ao sujeito (no sentido latino de sujeição,
submissão) a impressão de autonomia e liberdade.

O resultado do novo paradigma centrado no deus Mercado todos conhecemos:
degradação ambiental; guerras; gastos exorbitantes em armas, sistemas de
defesa e segurança; narcotráfico e dependência química; esgarçamento dos
vínculos familiares; depressão, frustração e infelicidade.

Ainda é tempo de professarmos o mais radical ateísmo frente ao deus Mercado
e, iconoclastas, apelarmos à ética para introduzir, como paradigma, a
generosidade, a partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho, a
felicidade centrada nas condições dignas de vida e no aprofundamento
espiritual da subjetividade.

Isso, contudo, só será possível se não ficarmos restritos à esfera da
autoajuda, das terapias tranquilizadoras da alma para suportarmos o estresse
da competitividade, e nos mobilizarmos comunitariamente para organizar a
esperança em novo projeto político fundado na globalização da solidariedade.

Eis o desafio ético que, como assinalou José Martí, será capaz de articular
emancipação política e emancipação espiritual.

Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=49659